Garoto dribla a morte de coração novo

24/03/2012 15:01

 

Garoto dribla a morte de coração novoEm seis meses, Matheus de Oliveira Leite viu o coração enfraquecer e sua vida limitada a um quarto de hospital. Hoje, o 100º paciente de transplante cardíaco do HC já pode torcer sem susto pelo time predileto

Arnaldo Viana - Estado de Minas

 

 

Ameaçado pelo coração enfraquecido, Matheus viu sua vida limitada a um quarto de hospital. Com o sonho de ser jogador de futebol, hoje ele voltou aos  
Ameaçado pelo coração enfraquecido, Matheus viu sua vida limitada a um quarto de hospital. Com o sonho de ser jogador de futebol, hoje ele voltou aos "treinos" com o irmão Felipe

 

De repente, o coração enfraqueceu e os tímidos olhos verdes de Matheus Lucas de Oliveira Leite perderam o brilho. Eles se apagariam para sempre aos 13 anos se não fosse a coragem, a fé e a persistência da mãe, Roseli Aparecida de Oliveira Leite, de 36. Os olhos de Matheus, herdados da mãe, estão brilhando novamente, alimentados por um novo coração batendo, e olhando para a direção que o garoto cruzeirense, fã do goleiro Fábio e do armador Montillo, mais gosta: o futebol. Matheus foi o 100º paciente de um transplante de coração do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.

A dona de casa Roseli e o marido, o comerciante Nionaldo José Gonçalves Leite, também de 36, estão tão unidos quanto estiveram nos últimos seis meses. Mas, agora, não por medo ou ansiedade, mas pela felicidade de ter novamente o filho a caminho de uma vida longa e promissora. A cirurgia foi um sucesso. “Foi um susto, um baque muito grande e uma dura e penosa luta”, diz ela, que, em mais de uma ocasião, ouviu a sentença que nenhuma mãe ou pai deseja ouvir: “Não há mais nada a fazer pelo seu filho!” Mas Roseli nunca acreditou nisso e correu, com o fôlego que tinha e com o que não tinha, para salvar o menino.
 

Ameaçado pelo coração enfraquecido, Matheus viu sua vida limitada a um quarto de hospital. Hoje pode torcer pelo time predileto (Beto Novaes/EM/D.A Press)  
Ameaçado pelo coração enfraquecido, Matheus viu sua vida limitada a um quarto de hospital. Hoje pode torcer pelo time predileto

Matheus Lucas era um garoto aparentemente saudável. No fim de uma tarde de agosto, logo depois de completar 13 anos, chegou em casa ofegante além do normal. Um cansaço que não tinha fim. Roseli não gostou de vê-lo daquela forma e disse: “Filho, vou levá-lo ao médico”. Em poucos minutos estava no posto médico do Bairro Cristina, em Santa Luzia, Grande BH. “A médica que nos atendeu disse para não nos preocuparmos. Era culpa do ar seco. Depois de ele fazer inalação, fomos liberados. Chegamos em casa às 18h e duas horas depois ele continuava cansado.”

Peregrinação Roseli e o marido voltaram ao posto com o menino. “Fomos atendidos por um médico, que havia acabado de entrar de plantão. “O coração do Matheus estava com 160 batimentos por segundo. O médico pediu um raio-X do tórax e viu que o coração dele estava inchado. Imediatamente o levei ao CGP (Hospital Infantil João Paulo II), onde passou a fazer controle médico. Um mês depois, a médica que o atendia nos recomendou levá-lo para casa. Ela disse que se tratava de uma miocardiopatia dilatadae que era um caso sem solução”, conta Roseli.

“Não me entreguei e no dia seguinte o levei à Santa Casa de BH. O médico que nos recebeu constatou a fraqueza do coração de Matheus. Por coincidência, ele seria acompanhado pela mesma médica que o desenganou no CGP”, acrescenta. O garoto foi, então, avaliado por um clínico geral, que reuniu os pais e informou: “Há uma luz no fim do túnel, o transplante”. Roseli e o marido se animaram. “Iniciamos ali uma batalha para conseguir vaga no Hospital das Clinicas”, releva o comerciante.

 “Primeiro queriam que tirássemos Matheus da Santa Casa, alegando o risco de infecção hospitalar. Não o tirei até conseguir uma guia no posto médico no Bairro Padre Eustáquio autorizando a internação no Hospital das Clínicas”, conta Nionaldo. Dia 14 de janeiro, o garoto, muito debilitado, deu entrada no HC e foi recebido pelo cardiologista Sílvio Amadeu Andrade. Passou por uma bateria exames e em 7 de fevereiro houve o transplante de coração, mais não foi uma decisão fácil para a família. “Queríamos o transplante porque era necessário. Se não o fizessem, Matheus não viveria mais três dias. Sofremos, tínhamos medo, mas graça a Jesus tudo deu certo”, diz  Rosali aliviada.


Coração azul e branco

O menino Matheus Lucas é de poucas palavras. Quando ousa falar um pouco mais, o assunto preferido é futebol. Estuda na Escola Estadual Raul Teixeira da Costa, em Santa Luzia. Como ficou muito tempo longe da sala de aula, está completando, em casa, o 8º ano do ensino fundamental. Torce para o Cruzeiro e nas peladas atua de goleiro, como Fábio, seu primeiro ídolo. Hoje, como todos os apaixonados pelo time de camisa azul, se rendeu ao talento e aos gols do argentino Montillo. “Tenho vontade de conhecê-lo.” Quanto ao jogo inesquecível, não tem dúvida: “Foi aquele dos 6 a 0 no Galo”. Entre os craques que não vestem a camisa estrelada, o preferido é Messi.

Nessa quinta-feira, Matheus reencontrou a velha bola, que estava jogada em um canto da varanda frontal da casa. Acariciou-a com os pés e revelou o seu sonho: “Quero ser jogador de futebol”. É o que desejam quase todos os meninos de sua idade. Mas entrar no mundo do futebol, mesmo se houver talento, não é tarefa fácil. Em um milhão de pretendentes, surge um Ronaldinho Gaúcho. De coração novo, Matheus vai ter toda uma vida pela frente para refazer os sonhos e concorda que pode buscar nos estudos um futuro real.

Roseli e Nionaldo têm mais dois filhos: Felipe, de 9, e Sara, de 1 ano e 10 meses. A família mora em uma casa simples, mas confortável e arejada, no Bairro Cristina. Durante a peregrinação de Matheus por ambulatórios e hospitais, a mãe mal conseguia entrar no quarto do menino e encarar o videogame e o computador onde ele passava horas envolvido com o futebol. “Meu coração partia.” Nionaldo chora quando lembra do filho, na UTI do Hospital da Clínicas, lhe pedindo para comprar um quibe. “Como, se não é permitido? Um desejo tão pequeno e eu não pude satisfazê-lo.”

“Durante todo esse tempo foi joelho no chão, orando”, conta Maria de Lourdes Oliveira, de 71, mãe de Roseli. A família é evangélica, da Igreja Batista Esperança. “Houve orações em todos os templos. Até em Brasília, onde fizemos jejuns de 24 horas.” Roseli e Nionaldo não sabem quem é o doador, “mas rezamos todos os dias por ele e pela família dele”. 


No país, HC é segundo centro transplantador 

O HC já chegou ao 107º transplante. Matheus Lucas é o mais novo desses pacientes. Mas não é o mais novo transplantado do estado. Um menino de 11 anos passou por esse procedimento no Hospital Felício Rocho, onde começou a história dos transplantes em Minas, em 1986. A causa do enfraquecimento do coração do garoto é desconhecida. Não há histórico de doenças cardíacas na família e o problema pode ter se desenvolvido até mesmo a partir de uma virose.
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“No caso do Matheus, isso não importa mais. Ele já passou pelo transplante e está bem”, diz a cardiologista Maria da Consolação Vieira Moreira, coordenadora da área de transplantes de coração do HC e professora da Faculdade de Medicina da UFMG. O cirurgião cardiovascular Cláudio Gelape, também professor da UFMG, integrou a equipe do 100º transplante, o de Matheus Lucas. “É emocionante, como da primeira vez, participar de uma cirurgia que vai mudar a vida de alguém.”

Sorte A equipe de cinco cirurgiões iniciou o transplante em Matheus às 23h. Saiu às 6h20, esgotada, mas feliz com um novo sucesso. “É uma realização, tanto para nós quantopara o paciente e a família dele”, diz Cláudio. E o garoto teve sorte. Segundo o cirurgião, é difícil achar doadores para pacientes com menos de 40 quilos ou mais de 100 quilos. A média de peso dos doadores é de 70kg. E o órgão, para o bom resultado do procedimento, não sobrevive mais que quatro horas depois de retirado do doador. O que bate no peito do garoto demorou apenas 80 minutos para chegar até ele.

“O pouco tempo permite ótimos resultados”, afirma. Por isso, em um transplante, duas equipe entram em ação: enquanto uma coleta o órgão doado, a outra prepara o receptor. Cláudio Gelape é um apaixonado pelo que faz. Ele acabou de chegar dos EUA, onde fez um pós-doutorado em transplante de coração artificial, tecnologia ainda muito cara e distante da realidade do Brasil. 

Maria da Consolação está entre os pioneiros do transplante de coração em Minas. Ela iniciou a carreira no Felício Rocho e quando o Hospital das Clinicas começou a fazer o procedimento, em 2006, assumiu a coordenação. “Somos o segundo centro transplantador do país, com média de 25 cirurgias por ano”, conta, orgulhosa. “Temos resultados extraordinários e só não estamos melhores por falta de doadores.” 


Memória: Primeiro transplante foi feito há 26 anos

Em 26 de abril de 1986, Maria Geracina Faria Franco e Carlos Camilo Smith Figueroa entrariam para a história. Ela como a primeira mulher brasileira a fazer um transplante de coração. Ele por coordenar a cirurgia pioneira em Minas Gerais. A história dos dois estará sempre atrelada, desde o dia em que o médico viu a paciente pela primeira vez. “Estava montando o programa de transplantes no hospital quando apareceu a Geracina. Ela tinha 30 anos e uma insuficiência cardíaca brutal”. Internada pela 16ª vez, a paciente havia chegado muito mal ao hospital quando chamaram Figueroa para vê-la. “Era o caso ideal para o transplante. Já estava preparado tecnicamente para fazê-lo, mas como era algo novo e potencialmente de risco, tive que levar a ideia à comissão científica do hospital. Muita gente se opôs, mas a cirurgia foi aprovada. Era a única saída para a paciente.” Começava outra etapa da luta: conseguir o órgão. Geracina ficou 10 dias internada, medicada, esperando... Em uma noite de sábado, um neurocirurgião do pronto-socorro ligou para Figueroa. “Temos um doador’, ele disse. Eliane Stanciolli, de 30 anos, deixava marido e filhos. Chegou ao hospital com morte cerebral provocada por um AVC hemorrágico. Figueroa explicou a situação a um primo médico de Eliane e o levou para ver Geracina. Às 23h do mesmo dia começava o primeiro transplante de coração de Minas Gerais. Cinco horas depois a equipe deixou a sala e a paciente com vida. “A sensação foi de dever cumprido, de vitória. Preparei-me por muito tempo e vi um bom resultado”, diz. Geracina viveu 17 anos e durante todo esse tempo manteve contato com o médico. 

Fonte: https://www.em.com.br